– Pronto. Começamos agora. – disse Camila a Domingos assim que ele chegou à cozinha, antes mesmo de lhe dar bom-dia. À mesa, descansavam sobre a toalha xadrez em bege e vermelho uma tigela com granola orgânica, meio mamão papaia, uma bisnaga de mel, uma garrafa de iogurte natural e duas fatias de pão integral.
– Começamos agora o que mesmo? – respondeu-lhe perguntando Domingos, como quem não está muito bem localizado na geografia daquele diálogo.
– Você sabe que dia é hoje? – devolveu com outra pergunta Camila. Agora, com um leve sorriso no rosto, indicando que o que deveriam começar naquele momento não seria nada de muito grave.
– Claro que sei, hoje é domingo. – respondeu-lhe Domingos, completando que este é o dia que deve ter servido para dar-lhe o nome e que toda a semana sempre se lembrava disso.
– Não, Domingos. Hoje não é um domingo qualquer. É o primeiro domingo depois do sábado de enterro dos ossos, que vem depois da Quarta-feira de Cinzas, que é antecedida pela terça de Carnaval.
– Sim. E…? – voltou a perguntar Domingos, sem entender muito bem o que sua esposa queria com aquela conversa.
– É Ano-Novo meu amor. Finalmente, o ano está começando. E com ele colocaremos em prática as suas resoluções de ano novo. Lembra? – disse-lhe Camila resgatando a conversa que tiveram na noite do dia 31 de dezembro passado. – Você se lembra que havia prometido a partir do primeiro dia do ano abandonar as bebidas alcoólicas, melhorar a alimentação, praticar exercícios físicos e não comer mais doces e beber Coca-Cola – mesmo a zero? – perguntou Camila a um Domingos atento à esposa que resgatava todos os compromissos assumidos por ele naquele dezembro não muito distante. Apenas esquecera de lembrar os quatro livros que Domingos leria por mês, talvez por essa ser a parte mais fácil, inclusive por já ter iniciado a leitura de Les Miserables de Victor Hugo, uma de suas promessas.
– Ah não! Não acredito que tu não te esquecesses dessas coisas. Eu também não esqueci. Claro que vou colocá-las em prática. Todas elas.
– Então comecemos já. Nada de embutidos no café da manhã. Sempre uma fruta. Mas, antes, tome esse suco natural que preparei pra nós. Tem cenoura, couve, laranja, maçã, abacaxi e gengibre. – disse-lhe Camila estendendo a mão com um copo de suco. – E também já marquei consulta pra você com a nutricionista, para amanhã pela manhã. Encontrei uma ótima e que atende pelo plano. E reservei horários terças, quintas e sábados pela manhã com o personal trainer.
– Nutricionista? Personal trainer? E precisa de tudo isso? – disse Domingos não acreditando no que ouvia.
– Sim. Vamos fazer tudo como manda o figurino. Você vai gostar do personal. O nome dele é Dutra. E tem algo em comum com você. – disse-lhe Camila, talvez em uma tentativa de construir empatia de Domingos com as tarefas que já havia planejado para ele.
– O que? Não vai me dizer que ele também não gosta muito de exercícios físicos? – disse Domingos, tentando achar graça em toda aquela história que lhe colocava medo.
– Não, meu amor… Ele também é gremista. – disse-lhe a esposa com ternura, tentando amenizar o sofrimento que percebia se instalar no peito do marido.
A essa altura da conversa, Domingos já havia aberto a geladeira umas dez vezes. Olhara para dentro e, ao ver uma Tupperware com presunto, pegou-a na mão. Devolvera sob o olhar firme de Camila. O mesmo acontecendo com o pote de geleia de tangerina – ou chimia de bergamota como Domingos a chamava –, e com a caixa de leite UHT, que sempre utilizara para preparar o achocolatado.
Domingos decidiu abandonar a geladeira. Sentou-se na banqueta junto à mesa da cozinha. Pegou a garrafa de iogurte com a velocidade de quem pega um explosivo para desativá-lo e despejou o líquido pastoso sobre a granola. Em seguida, tomou em suas mãos a bisnaga de mel e desenhou trilhas doces e douradas sobre o iogurte, que já penetrava por entre as sementes. A primeira colherada seguiu a instrução dos especialistas: segurou a respiração. Afinal de contas, a boca sente menos se o nariz não lhe mandar algum aviso. Como uma criança obrigada a comer brócolis, fez uma cara de nojo. Camila sugeriu intercalar uma colher de granola e uma de mamão. Domingos seguiu sem discutir. Afinal de contas, já é um adulto e sabe muito bem os benefícios daquela alimentação. Apenas não esperava ter de fato que encarar tal momento. O café da manhã terminou sem mortos nem feridos.
No final da manhã, a maior surpresa. Domingos se preparou para assar o churrasco de domingo. Pegou a carne na geladeira. Aproveitou para dar uma olhada em tudo que não havia comido no café da manhã. Ajeitou os espetos sobre a bancada ao lado da churrasqueira. O sal grosso. O pão de alho. Os salsichões. O sol lá fora rachava. O que lhe despertou um desejo. Abrir uma cerveja. Virou-se, curvou-se, abriu a porta da cervejeira e… não havia nada lá dentro.
– Camilaaaaaaaaa!!!!! – gritou a plenos pulmões.
– O que foi meu amor? – perguntou-lhe Camila depois de fazer o percurso da cozinha à varanda em um pé só e quase escorregar no corredor, chegando esbaforida junto ao marido.
– Onde estão as porras das minhas cervejas que estavam aqui? – disse-lhe Domingos mostrando bastante irritação – como é possível perceber pelo vocabulário.
– Eu dei para a sua irmã e o seu cunhado levarem na quarta-feira. – disse-lhe Camila já com um pouco de medo pelo transtorno aparente do marido.
– O que? Deu as minhas IPAs e as minhas APAs? O Sandro nem gosta dessas cervejas Camila. Tu ficaste louca? Diz pra mim que isso é uma brincadeira, diz. – esbravejou Domingos lançando um olhar condenador sobre a esposa.
– Não Domingos, não é brincadeira. Nós não precisaremos mais delas. Eu ia deixar estragando aqui em casa? – disse-lhe Camila, buscando colocar um pingo de racionalidade naquele diálogo.
– Como não precisaremos? Tu ficaste louca, só pode. Como não precisaremos? Como vou comer o churrasco sem beber uma cerveja? Como? – disse Domingos mostrando-se cada vez mais irritado. Ele batia a lateral da faca sobre a tábua de cortar a carne. Caminhava de um lado para o outro. Levantava e baixava o saco de carvão, ameaçando colocá-lo na churrasqueira. Logo recuava. Dos seus olhos saíam faíscas que, se dirigidas ao carvão, poderiam acender o fogo.
– Mas Domingos… uma de suas decisões de ano novo era abandonar as bebidas de álcool. Então, como entre elas estão as cervejas, achei por bem dispensá-las. Assim como fiz com os uísques e as vodcas, que dei para o meu irmão, e os vinhos para o meu pai. – disse Camila com uma calma que soou aos ouvidos de Domingos ainda mais irritante. Explodiu.
– O quê? Tu fizeste o quê? Eu vou pular daqui de cima. Tu ficaste louca mesmo. – disse gritando Domingos.
– Mas amor … – falou baixando ainda mais o tom da voz para acalmar o ambiente e, com certeza, evitar que os vizinhos ouvissem mais daquela discussão.
– Não tem amor, não tem mais nem menos Camila. – disse Domingos interrompendo bruscamente a fala da esposa.
– Mas você prometeu na noite de réveillon. – disse-lhe Camila, tentando manter o diálogo.
– Camila, prometi o quê? Eu estava bêbado, Camila. Bêbado fala qualquer coisa. Não dá pra levar a sério. Não tem resolução de ano novo coisa alguma agora. Acabou. E liga já para essa nutricionista e para esse tal de Dutra que eu não vou à consulta e a treino algum.